Texto: Andrews Nunes / Revisão: Filipe Dias
Em 1989, na pequenina cidade de São Manuel, interior de São Paulo, nasceu um garoto em meio a um temporal, como se o universo já anunciasse a chegada de alguém que agitaria as águas por onde passasse. Camilo Solano foi criado em um ambiente onde a arte era tão presente quanto as brincadeiras de infância. E foi justamente nessas brincadeiras, junto com seu irmão Aldo, que o desenho começou a ganhar forma e, num futuro próximo, dariam origem aos quadrinhos que conquistariam leitores por todo o Brasil.
Camilo desenvolveu um olhar atento para as histórias que o cercavam, misturando as memórias familiares com as próprias vivências e criando narrativas que carregam algo muito raro: sensibilidade e sinceridade em cada traço. Seus quadrinhos falam sobre relações, memórias e cotidiano.
Formado em Design pela UNESP, sua trajetória no mundo das HQs começou oficialmente com a publicação de Inspiração, seu trabalho de conclusão de curso. De lá pra cá, vieram outras obras importantes, como Desengano — com prefácio assinado por ninguém menos que Robert Crumb — e o tocante Solzinho.
Além disso, Camilo é músico, lançando canções que dialogam diretamente com o universo de suas histórias.
Nesta entrevista para o Quintal do Nerd, Camilo fala sobre sua trajetória como artista, a mistura entre música e quadrinhos, os desafios de produzir de forma independente no Brasil e como transformar o que se observa ao redor em arte. Um papo honesto, inspirador e necessário para quem gosta de HQs feitas com verdade e coração.
Quintal do Nerd - Camilo, queria começar te perguntando como a arte entrou na sua vida, quando você começou a desenhar e como foi o processo de criar histórias em quadrinhos.
Camilo Solano - Desde muito criança que a arte está na minha vida. Desde antes de nascer meus pais já eram grandes admiradores de arte. Meu pai tocava na noite e minha mãe vivia cantando canções do Caetano Veloso para o filho que estava pra nascer. Quando nasci, meus pais eram muito ativos nas atividades artísticas de São Manuel. Eles tinham uma escola de samba na cidade, meu pai compunha os sambas-enredo e minha mãe foi porta bandeira. Eu os acompanhava em tudo. Minha mãe diz que eu sempre gostei de desenhar, desde o começo. E ela incentivava sempre, comprando lápis, papel e gibis. Daí mais pra frente, já na faculdade, eu decidi realmente produzir uma HQ do começo ao fim para usar como TCC. Foi o que me motivou a fazer a primeira HQ, terminar a faculdade fazendo algo que significasse muito pra mim.
Quintal do Nerd - Alguns dos seus quadrinhos têm um jeito muito pessoal de contar histórias, como, por exemplo, uma das minhas obras favoritas Cidade Pequenina, Solzinho ou Fio de Vento que vão apresentando os personagens e nos envolvendo com roteiros que muitas vezes transmitem calma, despertam diversos sentimentos e trazem reviravoltas. O que te move a contar essas histórias?
Camilo - É curioso ler e descobrir as sensações que as HQ’s passam pra você. Esse tipo de relato faz toda a produção fazer mais sentido. Pois no momento que estou criando, é como se fosse um exorcismo de tudo que sinto que preciso dizer naquele momento. É uma mistura de experiências de vida, com observações que vou tendo pelo caminho. Observação literal mesmo, de parar e olhar alguma situação que me comova, me faça rir ou me deixe pensativo ou indignado. Eu vou juntando essas coisas que julgo que deveriam estar fixadas em alguma mídia para ficaram de certa forma eternizadas. Acho importante mantermos vivas as histórias de pessoas que já não estão mais por aqui, por exemplo. Então, Cidade Pequenina é mais ou menos isso. A maioria das histórias ali são de pessoas que já faleceram. São histórias reais que meu pai me contou e claro, eu interpreto e reimagino do meu jeito. De um jeito que me faça rir e me divertir, no caso.
Fonte: Arquivo Camilo Solano - trecho da HQ Solzinho
Quintal do Nerd - Você se lembra de quando começou a se interessar por quadrinhos? Teve algum gibi, autor ou momento que te fez pensar: “Quero fazer isso também”?
Camilo - Um momento fundamental para mim foi ao entrar em contato com a obra de Akira Toriyama. Acho que veio até um pouco antes do amor que tenho pelo Crumb. Aquilo ali mudou tudo nesse primeiro momento. O Crumb foi a explosão na cabeça, mas o Akira já vinha criando esse espaço onde me mostrava desenhos maravilhosos com um senso de humor absurdo. Os desenhos animados sempre foram uma inspiração gigante e presente. Assisto muito ainda hoje. Eu gostava de desenhos antigos, tipo Os Impossíveis, Jonny Quest que ainda passavam no início do Cartoon Network. Lembro de ir na casa de um amigo rico quando era pequeno e ele me mostrou esse canal. Eu não podia acreditar que aquilo era verdade. 24 horas de desenho animado. Foi revolucionário!
Quintal do Nerd - E a música? Como faz parte da sua vida hoje? O lançamento da música e da história em quadrinhos Desculpa o Áudio, em que você lançou a revista e a música ao mesmo tempo. Como foi esse processo de criação?
Camilo - A música está aqui comigo desde o começo também. É uma extensão de mim. O desenho e a música são extensões da minha alma, que fica exposta e aberta mesmo. É algo muito forte, pra mim, é tudo. E sempre foi. Sempre soube que seria músico e desenhista. Tiveram momentos de dúvida, claro. O tempo todo, mas não é algo a se escolher. A arte faz parte de mim e eu não consigo fazer outra coisa. Não importa. Lançar a HQ que também é música, foi um jeito de unir meus amores e dizer que não sou limitado a uma única coisa. Eu quero me comunicar, não importa como.
Quintal do Nerd - E, ainda falando de música, gostaria de perguntar como ela está presente na sua vida atualmente. Como foi lançar o álbum Quase Tudo Mundo, em 2024?
Camilo - Foi uma confirmação de que é possível fazer as coisas com as pessoas certas e saber em quem confiar. Tanto nos quadrinhos quanto na música, eu tenho a sorte de estar rodeado de pessoas muito sérias e competentes. E acima de tudo, parceiras. Não se faz nada sozinho. Mesmo nos quadrinhos onde faço a arte e escrevo tudo. Eu sempre tenho a ajuda de algum editor, como o Guilherme Kroll ou o Sidney Gusman, a ajuda de um colorista base, como o Gleisson Cipriano. E na música não é diferente, eu acabo as minhas composições e já vou falar com meus parceiros. Como o Eder Araújo, que faz todos os arranjos em sopro para mim. Ou o Yuri Queiroga que produziu todo o meu disco. A Josi Herculano que é uma produtora executiva e tem um selo musical que abraçou o meu álbum e lançou nas plataformas. São irmãos e irmãs de jornada. Conhecer pessoas e se relacionar com as melhores, tanto no profissional quanto no pessoal, é fundamental.
Álbum: Quase Tudo Mundo
Quintal do Nerd - Olhando para trás, você sente que seu trabalho foi mudando com o tempo? O que mudou em você como artista?
Camilo - Eu sinto que tô mudando o tempo inteiro. Procurando ao menos mudar. Mudando pra melhor, tanto como pessoal como profissionalmente, digo novamente. É preciso se atualizar, entender o tempo que estamos vivendo e se adaptar. O ser humano é assim. Mantenho as minhas crenças do que eu acho que a arte deve ser, que é justamente ser maleável. Se transformar sempre. É bom e necessário. Pelo menos pra mim.
Quintal do Nerd - O que você acha do momento atual dos quadrinhos independentes no Brasil? E o que você anda lendo ultimamente?
Camilo - Acho que nunca se produziu tanta coisa independente como antes no Brasil Acho um momento espetacular de produção. Não dá pra dizer o mesmo do consumo. Não se consome tanto quanto se produz eu acho. Infelizmente também, muitas editoras não estão publicando mais tanto obras nacionais. Para elas, é um jogo arriscado. Não todas, óbvio. Ainda existem muitas editoras que dão a cara a tapa assim como nós artistas fazemos. A real é essa, todo mundo tem que encarar e entender que não é pra ser uma competição. Todos que amam e produzem quadrinhos nacionais tem o mesmo objetivo, que consigamos todos sobreviver em um mercado estabelecido. Mas é uma realidade infelizmente e aparentemente distante por enquanto. Não é choro ou reclamação, mas é preciso estar atento e forte aos sinais das coisas. Ser realista é necessário também. Estou lendo um livro de Gabriel Garcia Márquez, “Memórias de minhas putas tristes”.
Quintal do Nerd - Você tem vontade de experimentar outros formatos, como animação, série ou algo na área do audiovisual?
Camilo - Sim! Toda forma de comunicação me seduz muito. Amo áudio e amo visual. Acho que todas as formas que procuram alcançar pessoas e aproximá-las umas das outras, vale a pena.
Quintal do Nerd - Para quem está começando a criar agora, desenhar, compor, escrever que conselho você daria?
Camilo - É batido dizer isso, mas o que eu recomendo é que você faça. Não importa. Faça coisas menores. Faça testes, mas esses testes devem ser feitos como se fosse a obra final. Só digo para fazer obras pequenas, pois esses trabalhos cansam muito. E levam muito tempo. Então, é sempre bom experimentar antes, para ver o que pode funcionar ou não pra você, se você se diverte ou não.
Quintal do Nerd - Para terminar: o que você gosta de fazer quando não está criando? O que te diverte quando está descansando? Tem algumas musicas que você recomendaria para escutar lendo HQs?
Camilo - Eu gosto de ver filmes antigos. Esses dias me perguntaram qual era o meu hobby e eu tive muita dificuldade em responder. Pois desenhar e tocar violão são o meu ofício, mas também são uma atividade para descansar a mente. No caso, quando não estou trabalhando com desenho ou música, eu uso o desenho e a música para me divertir. Além disso, filmes antigos mesmo. Animações e tal. Mas mais filmes. Eu não consigo ler ouvindo música ou vice-versa hahaha. É muita concentração dissipada. Tenho ouvido bastante Gonzaguinha, os primeiros discos. É muito bom. Absurdo. Recomendo.
A entrevista com Camilo Solano mostra com clareza o quanto ele construiu sua trajetória com consistência e autenticidade. Desde os primeiros desenhos até as HQs premiadas e os discos lançados, Camilo vem experimentando linguagens sem abrir mão do que acredita: a arte como forma de expressão pessoal, mas também como ferramenta de diálogo com o mundo ao redor.
Ele é um dos nomes mais ativos e relevantes do quadrinho nacional contemporâneo, e sua visão sobre o mercado, os processos criativos e a colaboração com outros artistas contribui para entender melhor os bastidores dessa cena independente que cresce, mesmo em meio a tantos desafios.
No Quintal do Nerd, seguimos acompanhando e apoiando trabalhos como o dele — que combinam qualidade, pensamento crítico e dedicação. Se você curte quadrinhos autorais, vale muito conhecer (ou revisitar) a obra de Camilo Solano. Até a próxima!
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