Entrevista : Alexandre Callari fala sobre escrita, curadoria e o futuro das HQs

 

Revisão: Filipe Dias

Quem acompanha quadrinhos no Brasil com certeza já cruzou com o trabalho de Alexandre Callari — seja como autor de A Floresta das Árvores Retorcidas e roteirista em Espelho Meu com desenhos de Robson Moura ou como um dos fundadores do selo editorial Pipoca & Nanquim, que nos últimos anos se tornou uma das editoras mais respeitadas do país.

Além de escritor, Alexandre é apresentador, editor, pesquisador, lutador e músico. Ao lado de Bruno Zago e Daniel Lopes, ele ajudou a transformar um canal de YouTube em um verdadeiro fenômeno editorial, responsável por trazer ao Brasil obras fundamentais dos quadrinhos e da literatura clássica, sempre com curadoria afiada, pesquisa histórica e um cuidado gráfico impressionante.

Nesta entrevista exclusiva ao Quintal do Nerd, Alexandre fala sobre sua trajetória como autor, o dia a dia nos bastidores do Pipoca & Nanquim, sua relação pessoal com as HQs — e também o que faz quando não está mergulhado nelas.

Quintal do Nerd - Você tem uma trajetória que passa por várias frentes: escritor, editor, apresentador e pesquisador. Como essas diferentes experiências se encontram no seu dia a dia?

Alexandre Callari - Por mais que todas essas atividades pareçam díspares, há pontos de conexão entre elas. Ser não só um editor, mas também tradutor e revisor das obras que publicamos, tornou meu trabalho como escritor melhor. Para ser um bom escritor, é necessário ler muito, ter conhecimento da língua, das maneiras como as palavras se interligam, das funções delas no discurso etc., e tudo isso melhorou em mim por conta do meu trabalho no PN. Ser um pesquisador de quadrinhos também contribuiu para que eu me tornasse um apresentador melhor dentro do meu nicho e vice-versa; ser um apresentador melhor, ter um discurso melhor, me tornou um escritor melhor. Ou seja, dentro do formato que minha vida assumiu, essas coisas caminham todas juntas hoje.

Imagem: Pipoca e Nanquim

Quintal do Nerd - Em obras como Apocalipse Zumbi e A Floresta das Árvores Retorcidas, você explora uma mistura de horror, ação, cultura pop e literaturas clássicas. Como foi encontrar seu estilo como autor dentro desse universo?

Alexandre - Apocalipse Zumbi foi um grande laboratório. São mais de mil páginas escritas, um feito e tanto para um autor que estava começando. Lá tive liberdade de experimentar, de ver o que funcionava e o que não, de testar limites... Se eu escrevesse a trilogia hoje, seguramente ela seria bem diferente, pois estou mais velho e mais experiente. Mas dificilmente eu teria progredido tão rápido como escritor sem ter publicado essa obra, por mais que enxergue muitos defeitos nela com os olhos de agora. Já Floresta foi uma evolução mais natural. Estava trabalhando com meus amigos como editores, pessoas em quem confio e que ajudaram a extrair o melhor de mim. É um livro bem mais maduro no qual eu já sabia onde queria chegar desde o início.


 
Quintal do Nerd - Tem novos projetos autorais vindo por aí? O que você poderia nos contar sobre a HQ Ésfera que foi anunciada na CCXP24 e se tem alguma previsão para lançamento desta HQ?

Alexandre - Ésfera: 4 Dias Para Salvar o Rei é minha grande obra de fantasia, um gênero que aprecio bastante, mas no qual nunca me arrisquei porque julgava não ter muito com o que contribuir. Contudo, tendo encontrado um recorte relevante – algo que busco em todas as minhas obras – decidi que era hora de me dar esta chance e creio que consegui criar meu melhor trabalho até o momento. É uma HQ de fantasia épica, mas que aborda temas atuais, em particular a polarização política que tem acometido sociedades do mundo todo.

Imagem: Pipoca e Nanquim

Quintal do Nerd -  O catálogo do Pipoca & Nanquim é super diverso e cheio de personalidade. Como funciona o processo de curadoria dentro da editora? Que tipo de obra "conquista" você?

Alexandre - As obras que publicamos precisam passar pelo crivo de nós três, eu o Bruno e o Daniel. Se por acaso algum de nós tenha ressalvas, não lançamos. O fato de termos gostos distintos ajuda neste caso, porque quando os três aprovam, sabemos que temos um produto campeão.

Quintal do Nerd - Já aconteceu de vocês lutarem muito para publicar uma HQ que parecia impossível — por direito autoral, negociação difícil, ou algo assim?

Alexandre - Sim, com bastante frequência. Entrar no mercado de mangás foi difícil. Franquias grandes como Conan, Rambo e Tartarugas Ninja foram difíceis. Publicar dois Alan Moore inéditos, sendo que em um deles tivemos de recuperar os arquivos, parecia impossível. Toda licença tem seus desafios e particularidades, mas faz parte da graça da coisa.

Quintal do Nerd - O Pipoca é uma das editoras mais respeitadas no cenário atual. Quais foram os maiores desafios para chegar até aqui — e o que ainda é difícil hoje?

Alexandre - Nunca tomamos atalhos e isso torna o processo mais lento do que o desejado, mas ao mesmo tempo, consolida bases sólidas para a empresa. Nunca demos um passo maior do que a perna, sempre soubemos quando avançar e quando recuar, sempre respeitamos todo mundo – público, parceiros, colaboradores, autores, agentes, licenciantes etc. Acho que esse é o segredo: amamos e nos divertimos com o que a gente faz, mas com seriedade e responsabilidade.

Foto: Rogério Albuquerque

Quintal do Nerd - Como você enxerga o público leitor de quadrinhos no Brasil hoje? Acha que ele tem mudado com o tempo?

Alexandre - Sim, ele tem mudado bastante. Há mais volatilidade no mercado, muitos fãs sendo influenciados na internet por opiniões alheias, que nem sempre têm fundamento. Há também muita reclamação por pouca coisa... Eu jamais pedi a troca de um livro por um amassadinho na ponta da capa, por exemplo. Nunca fui injuriar um criador em seu perfil ou saí destilando veneno por não gostar ou discordar de algo. O que não me agrada, tiro da minha vida, simples assim. Hoje, alguns leitores abraçam ideologias – o que não é errado – mas isso as leva a condenar obras e autores, sem necessariamente contextualizar o momento em que elas foram criadas, o que gera um disparate. Se apenas apagarmos o passado, estaremos fadados a repeti-lo (o que já vem sendo observado mundo afora). A cultura do cancelamento está amainando, ganhando aos poucos mais conscientização, mas ela ainda se faz presente e, em muitos casos, gera problemas graves e impossíveis de serem consertados. O leitor de hoje também é menos paciente e quer tudo para ontem – um reflexo da aceleração da nossa sociedade. Por conseguinte, nem bem desfrutou de uma obra anunciada e já está querendo saber da próxima, contudo, nem tudo é feito para consumo rápido. A arte precisa ser saboreada e digerida, e penso que perdemos um pouco disso em troca da celeridade.

Quintal do Nerd - Vocês começaram como um canal no YouTube e viraram referência editorial. Como foi essa transição? E como você vê o papel do conteúdo digital nessa jornada?

Alexandre - O canal tornou-se uma extensão da editora e vice-versa, o que é um aspecto muito bonito da nossa operação. Por meio dele nos comunicamos com o público, dividindo os louros e agruras. Quando lançamos um livro de um grande autor, criamos conteúdo adicional para o canal. Desta maneira, verdadeiros “documentários” surgiram, que beneficiam não só quem comprou nossos livros, mas todos que estiverem dispostos a dar o “play” nos vídeos. É conteúdo para qualquer um, é conteúdo para todos!!! Não dá para ser mais democrático e inclusivo do que isso. De fato, não houve uma transição real, porque seguimos fazendo o que sempre fizemos, que é trabalhar em prol dos quadrinhos no país.

Quintal do Nerd - Por fim: que conselhos você daria para quem sonha em trabalhar com quadrinhos — seja como escritor ou editor?

Alexandre - É a profissão dos sonhos, caso você seja um aficionado por HQs, mas não se engane; como tudo o mais na vida, é um trabalho e, como tal, precisa ser levado a sério. Qualquer que seja o ofício que você queira exercer, para ser bem-sucedido, precisa se dedicar. Precisa estar preparado, precisa se atualizar, reinventar, e depois se atualizar e reinventar de novo. Do contrário, ficará para trás. Aqui é a mesma coisa. É preciso ser resiliente e acreditar no seu talento, mas também saber ser humilde e estar disposto a começar de baixo.


Foto: Pipoca e Nanquim


Agradecemos ao Alexandre Callari pela generosidade e transparência em compartilhar tanto da sua jornada — e convidamos você, leitor, a acompanhar de perto o trabalho dele e do Pipoca & Nanquim.

Nesta conversa com Alexandre Callari, ficou evidente como paixão, disciplina e visão crítica podem caminhar juntas na construção de uma trajetória sólida no universo dos quadrinhos. Seja como escritor, editor ou apresentador, Callari mostra que o verdadeiro diferencial está na entrega e no cuidado com cada etapa do processo — da escolha de uma obra à maneira como ela é apresentada ao público.

Mais do que uma entrevista, esse bate-papo é também um retrato da evolução do mercado editorial brasileiro e da importância de quem trabalha com seriedade para ampliar e valorizar a cultura nerd no país.

Nos vemos em breve no Quintal do Nerd, com mais entrevistas e conteúdos apaixonados sobre cultura pop, quadrinhos e literatura.

Sigam o Alexandre e o Pipoca e Nanquim nas redes sociais links abaixo.

Alexandre Callari: Instagram

Pipoca e Nanquim: Instagram

Canal Pipoca e Nanquim

















Postar um comentário

1 Comentários

  1. Achei muito bacana a maneira como o Alexandre encara e relaciona os diversos projetos e funções que exerceu e exerce, mostrando que a vida e nossas escolhas não acontecem de forma linear. Quer ler Ésfera!! Parabéns por nos trazer esta entrevista!!

    ResponderExcluir